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Quadrinhos: Entre Arte, Política e a Participação do Leitor

  • Foto do escritor: Felipe Luvizotto
    Felipe Luvizotto
  • 2 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 31 de jul. de 2024


As histórias contadas por meio de imagens configuram-se, provavelmente, como a manifestação de comunicação e arte mais antiga dentre aquelas cujos registros sobreviveram às intempéries do tempo. Na medida em que uma mensagem visual passa a ser transmitida através de diferentes instâncias, ou seja, imagens que partilham de uma relação comum, são estabelecidas duas das principais características daquilo que milênios depois dos primeiros registros nas pinturas rupestres passou a ser compreendida como História em Quadrinhos: a representação visual do tempo e sua disposição no espaço; e a compressão e descompressão do tempo e da mensagem. Uma mensagem muito comprimida compreende aquela em que, através de uma única imagem, uma história é contada, como em charges políticas. Ao fragmentar a informação em mais imagens, ocorre um processo de descompressão que afeta o ritmo narrativo. Duas imagens justapostas que propõem uma sequência ilustram a relação entre o antes e o depois, representando o tempo de forma concisa.


Segundo o pesquisador Charles Hatfield (2005) qualquer procedimento de leitura de HQ surge a partir da necessidade de equilibrar diferentes mensagens e uma série de tensões provenientes delas que ocorrem: entre códigos de significação; entre imagem única e imagens em série; entre sequência narrativa e a superfície da página; e entre a leitura do texto e a materialidade do objeto (p.36).


Algumas características da linguagem das HQs e sua demanda por participação ativa do leitor refletem os conceitos do filósofo francês Rancière (2009) sobre a interseção entre arte e política, permitindo diversas percepções do mundo. Sousanis (2017), professor e crítico de arte, ressalta que as HQs proporcionam uma experiência sensorial única e representam um ambiente emancipatório, não permitindo uma posição passiva. Segundo Groensteen (2015), a leitura das HQs requer uma cooperação ativa do leitor, caracterizada por sua natureza relutante. Ao contrário do cinema, as imagens estáticas das HQs não possuem o mesmo poder de ilusão, e suas sequências apresentam lacunas de sentido que demandam a participação ativa do leitor para completar a narrativa.


Para Rancière (2012, p. 17), a emancipação “(...) começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidencias que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição.”

Sobre essa estrutura quadrinística que articula esse processo emancipatório, ao menos no que diz respeito à estrutura da linguagem, a pesquisadora Barbara Postema (2018) argumenta que nos quadrinhos, as lacunas entre as imagens são visíveis de forma literal, evidenciando os processos narrativos e tornando os quadrinhos uma forma consciente de si mesma, que envolve diretamente seus leitores.



A linguagem dos quadrinhos abarca várias áreas do conhecimento, como artes, linguística, letras e ciências sociais aplicadas, evidenciando seu caráter híbrido. Isso a posiciona como uma manifestação que transita entre as artes visuais, comunicação em massa, literatura e design, podendo focar em áreas específicas conforme a proposta.


Em uma analogia onde os quadrinhos podem ser compreendidos como um lugar de partilha do sensível que, ao mesmo tempo, revela um comum entre diferentes áreas e demarca e separa as partes respectivas — ou seja, participam da configuração daquilo que compreendemos como uma linguagem dos quadrinhos por meio de características distintas e identificáveis —, é possível reconhecer a separação das partes daquilo que pertence à comunicação, às artes e ao design, da mesma forma que é possível reconhecer os diferentes modo de fazer.


As HQs na condição de mídia se inserem no mesmo campo que quaisquer outras produções editoriais, sob as mesmas regras de produção e consumo e, do mesmo modo, se distinguem de outras produções em massa por nelas estarem inseridos os “homens de cultura”, cujo fim primeiro é o da produção de valores culturais, aceitando os condicionantes do sistema industrial para esse fim. Seria correto, sob esse ponto de vista, afirmar que a inserção e propagação de um pensamento emergente não conota um percurso reformista e sim a aceitação das condições apresentadas pelos meios para se afirmarem e posteriormente, modificarem o próprio meio. Os valores culturais são modificados, partindo de uma ideia ou discurso que encontram amplificação em ambientes estabelecidos, em processos de “conhecimento progressivo, os quais, uma vez abertos, não são mais controláveis por quem os desencadeou.” (ECO, 2015, p. 52)


Utilizando os quadrinhos como um meio de comunicação de massa para propagar discursos ideológicos, Umberto Eco (2015), um importante linguista e filósofo que faz parte das teorias da comunicação, destaca sua capacidade de apresentar modos estilísticos originais e de influenciar hábitos. Apesar de sua dependência em relação a outras formas artísticas, como a pintura e o cinema, a linguagem dos quadrinhos se baseia na relação entre autor e leitor, usando códigos reconhecíveis e símbolos figurativos para criar uma narrativa eficaz. Essa linguagem também incorpora elementos gráficos para indicar o tipo de texto e representar sons, enquadramentos e o tempo.


O mito do Superman, segundo Umberto Eco, ilustra como um discurso ideológico se estabelece na mídia. Dotado de poderes sobre-humanos e capaz de feitos extraordinários, o personagem personifica virtudes desejadas pelos seres humanos, como coragem, inteligência e altruísmo. Ele representa um modelo a ser seguido, refletindo uma ideia do que é ser bom e do lado em que o bem deve estar. Além disso, a nacionalidade do personagem (EUA) e as cores de seu uniforme remetem à bandeira estadunidense.


Todavia, esse discurso por trás do personagem não se limita a apresentação de um ideal utópico, ele estabelece laços de identificação e projeção no leitor quando apresenta o personagem disfarçado de um trabalhador comum quando não está combatendo o mal. O Alter ego do Superman é o jornalista Clark Kent que se caracteriza por sua timidez, inteligência medíocre e miopia.


Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer de uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a esperança de que um dia, das vestes da sua atual personalidade, possa florir um super-homen capaz de resgatar anos de mediocridade. (ECO, 2015, 248)


O ideal de esperança proposto com o superman ideologicamente se assemelha, de certo modo, com àqueles propagados pelo capitalismo neoliberal sobre meritocracia, que atribui ao esforço individual (trabalho) a ascensão e o sucesso, materializados em consumos.

Em síntese, os quadrinhos emergem como um campo de intersecção entre arte, política e essa participação do leitor, cuja parcela é essencial na construção de significados. Sob a perspectiva de Eco sobre o mito do Superman, é possível afirmar que os quadrinhos não apenas refletem, mas também moldam valores culturais e ideológicos. Ao mesmo tempo, eles oferecem um espaço para questionar e desafiar essas narrativas, estimulando uma reflexão crítica sobre a sociedade e os sistemas de poder. Assim, os quadrinhos transcendem uma abordagem superficial como forma de mero entretenimento para se tornarem uma ferramenta poderosa de expressão e transformação social, convidando os leitores a imaginar e aspirar a mundos além das páginas.


Referências bibliográficas e materiais consultados


Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Trad. Pérola de carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015.

GROENSTEEN, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Nova Iguaçu: Marsupial Editora, 2015.

HATFIELD, Charles. Alternative Comics: An Emerging Literature. Jackson: University Press of Mississippi, 2005.

POSTEMA, Barbara. Estrutura narrativa nos quadrinhos. Construindo sentido a partir de fragmentos. Trad. Gisele Rosa. São Paulo: Peirópolis, 2018.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

SOUSANIS, Nick. Desaplanar. Tradução de Érico Assis. São Paulo: Veneta, 2017.


Sobre o autor

Doutorando em Design, bolsista PROSUP/CAPES, na UAM (Universidade Anhembi Morumbi), investigando relações de tempo e espaço em linguagens gráficas narrativas. Mestre em design pela UAM (Universidade Anhembi Morumbi), atuando na linha de pesquisa Design: Meios Interativos e Emergentes. Possui graduação em Desenho Industrial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2006) e Pós-Graduação lato sensu em Teorias e Práticas da Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero (2011). Professor nas áreas de design, artes visuais e comunicação. Atua desde 2001 na área de design gráfico desenvolvendo projetos ligados a embalagem, comunicação visual, ilustração, direção de arte e história em quadrinhos.


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